A favor do risco de vida – padrões, elipses e colocações

Vou mudar um pouco de assunto hoje, que falar só de uma coisa também enjoa. Vou falar um pouco de linguagem - mas não se preocupem, isso tentando não usar termos técnicos ou explicações obscuras. A ideia veio porque, como vivia brincando na rua quando criança e depois, vivia ouvindo o tal “risco de vida”. Era uma dessas expressões fixas, como o nosso “como vai?” de uso diário, que somente é mal interpretado em programas humorísticos. De um tempo para cá, ouvi falar nessa polêmica criada por alguém de que a expressão “risco de vida” estaria errada. O certo seria “risco de morte”, por “risco de” ser risco de algo negativo.

Em parte, isso não deixa de ser verdade. Se você verificar as ocorrências da expressão “risco de”, por exemplo, no Corpus Brasileiro, verá que ela realmente frequentemente está associada a palavras que consideramos negativas, como nomes de doenças. E realmente, exceto para os pessimistas, “vida” não seria algo negativo. Seguindo em frente, analisando rapidamente as ocorrências de “risco de”, podemos observar dois padrões gramaticais: “risco de” + [verbo] + [substantivo] (como em “risco de perder dinheiro”) e “risco de [substantivo] (como em “risco de enfarte”).

Por outro lado, “risco de” é uma expressão que indica probabilidade – a probabilidade de acontecer algo. Aqui, a palavra chave é “acontecer”. “Risco de” é uma expressão de probabilidade que está sempre relacionada a uma ação ou evento - e como sabemos, ações e eventos são tipicamente expressos por verbos. Mas tanto em “risco de morte” quanto em “risco de vida”, além de outras expressões congêneres, como “risco de enfarte”, não temos esse verbo.

Essa ausência pode ser explicada por um fenômeno comum na linguagem, a elipse, pela qual subentendemos uma palavra que não foi incluída na frase - nesse caso, o verbo. Considerado esse fenômeno, para nossa alegria (pelo menos para aqueles que, como eu, gostam de analisar padrões), poderemos juntar os dois padrões acima em um só: “risco de” + [verbo explicito ou elíptico] + [substantivo]. Dessa forma, em “risco de enfarte” teríamos um “sofrer/ter” elíptico.

E como o falante saberia qual é esse verbo que está subentendido na oração? Isso pode ser explicado por outro fenômeno da linguagem, a colocação – palavras que por força do uso, acabamos por associar entre si, como “remédio” e “amargo” ou “moça” e “bonita”, entre outros exemplos. Funciona mais ou menos como naquela brincadeira, na qual alguém fala uma palavra e o outro diz a primeira que lhe vem à mente. Então, como “sofrer” e “enfarte” são palavras normalmente usadas juntas, assim como “perder” e “vida”, saberíamos facilmente qual o verbo que foi omitido da frase. Em “risco de vida” estaria, assim, subentendido um “perder” - que levaria essa expressão a atender o requisito de “acontecer algo negativo”, citado acima.

Em “risco de morte”, qual seria o verbo omitido por elipse? Como falante da língua, confesso que tenho dificuldade em achar um. Em minha experiência, não se diz “sofrer morte”, ou algo assim. Talvez esse seja o motivo pelo qual já vi muita gente engasgar ao falar “risco de morte”, mesmo sabendo que “seria o certo”. Bom, nesse caso, o falante teria à sua disposição uma expressão bem mais simples e natural, que seria o “risco de morrer”.  É também interessante observar que como “entrar” e “óbito” são palavras frequentemente usadas juntas, para mim a expressão “risco de óbito” soa natural, muito mais pelo menos do que o tal “risco de morte”. Mas isso não quer dizer também que o tal "risco de morte" estaria errado. Há outro fenômeno na linguagem que é a nominalização, na qual você usa um substantivo para se referir à ação. O acontecimento de "morrer", nesse caso, estaria expresso pela "morte", uma mudança de estado. Então não haveria por considerar "errado" uma forma ou outra.

Em um pós-escrito, fiquei sabendo que o novo Acordo Ortográfico diz que as duas formas "de vida/de morte" podem ser usadas, portanto esses usos estão formalizados pelas autoridades. Mas em respeito às tradições e às minhas estripulias de criança, por enquanto minha decisão pessoal é ficar com o “risco de vida” mesmo para mim. Também tem que todo o patrulhamento gramatical contra o "risco de vida" acabou por me criar ojeriza a esse tal de "risco de morte". Mas se quiserem usá-lo comigo, fiquem à vontade, que compreenderei perfeitamente o que querem dizer - o que, no final das contas, é o que interessa no uso da língua - a comunicação.

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