O peixe fresco e o pirão


De suas tumbas de gelo eterno e brilhante, gélidos olhares me fitam inexpressivos, de seres de diferentes formas e tamanhos, com tentáculos pegajosos, nadadeiras cortantes e presas afiadas vislumbradas por entre ossudas mandíbulas entreabertas em ansiosa expectativa. Seres que antes irrompiam ferozmente das escuras profundezas para ataques imprevistos, implacáveis e letais, mortos de surpresa e prontos para a vingança.

Peixe no mercado
Photo by Zeshalyn Capindo on Unsplash

Por diversos motivos prefiro o peixe fresco – atualmente, o pintado - ao congelado, o que envolve parar em frente à banca de peixes e solicitar a ajuda do amigo peixeiro - que pode lhe dar sugestões de preparo, limpar o peixe e, dependendo do prato, cortá-lo em postas ou ao meio. Você pode também pedir para ele retirar a cabeça, se não for usá-la ou se ela lhe der a impressão de que o peixe vai de repente saltar enfurecido do saquinho do supermercado e arrancar fora a sua mão.

Mas o peixe fresco é vendido inteiro, ou seja, pesado (e ter o seu preço fixado) antes de ser limpo. Se você pedir para tirar a cabeça, o preço por quilo do resto do peixe vai subir. Para aproveitar bem o seu dinheiro, a saída é lembrar que não é algo comum um peixe voltar dos mortos. Então você poderá levar para casa a cabeça do peixe e fazer com ela um pirão, que aliás, é bastante nutritivo.

Lavo bem a cabeça em água corrente, aproveitando o fato de o peixe estar bem morto para enfiar os dedos lá dentro e retirar todo o sangue restante e outras coisas que ainda não sei bem identificar. Em uma panela, refogo bem em azeite a cabeça e a ponta do rabo - mais ou menos uns vinte minutos. Junto uns três tomates descascados e picados, umas colheres de minha pimenta ardida em conserva, um pouco de água e deixo cozinhando por mais ou menos uma hora, até toda a carne ter soltado da cabeça e dos ossos do peixe e ficar tudo bem homogêneo. Gosto de tirar as espinhas e as cartilagens que sobram quando tudo já estiver bem cozido – por motivos óbvios, gosto também de retirar da panela os olhos do peixe, que durante o cozimento se desprendem da cabeça.

Como em uma farofa, temos de desligar o fogo antes de colocar a farinha de mandioca torrada – o truque aqui é colocar bem pouca farinha, uma colher de sopa, ou no máximo duas, deixando o pirão com a consistência de um mingau bem mole – se você exagerar na farinha, o pirão endurece rapidamente e vira um tijolo.

A sugestão para o pirão é de ser um acompanhamento para o resto do peixe feito no forno. Quando a cabeça decepada finalmente voltará ao corpo que lhe pertence (aqui, aquela gargalhada sinistra do Vincent Price ao final do Thriller).

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